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Em defesa da Universalidade Concreta: Psicanálise e a Transmissão de uma política


Matheus Henrique Cezarino


 Em defesa da Universalidade Concreta: Psicanálise e a Transmissão de uma política

 Matheus H. Cezarino



Lacan expôs as ilusões em que se baseiam tanto a realidade capitalista quando suas falsas transgressões (...). A grande tarefa daqueles que estão dispostos a passar por Lacan é, portanto, articular o espaço para uma revolta que não será recapturada por uma ou outra versão do discurso do mestre” (Žižek, 2013,p.28)

 

 1. Da Política de Transmissão para a Transmissão de uma Política



O tema proposto pela Jornada da Thopos, A Política de Transmissão, cria tanto a possibilidade de delimitar algo que nomeamos de política da psicanálise quanto propor o resgate de uma práxis política que, “com os psicanalistas já bem instalados (...) não fede nem cheira” (Lacan, 2006, p.83).

Para a realização dessa tarefa, partimos da tese žižekiana (2016) de que a psicanálise é capaz de propor novas bases para o campo político com o intuito de argumentar que o inverso também é válido, de modo que a teoria política também promove transformações no discurso psicanalítico e na relação que os psicanalistas estabelecem com a sua função social.

Tal aproximação pode ser justificada de duas maneiras. De forma abrangente, considera-se que toda experiência, situada em determinadas condições históricas e materiais, é uma experiência política. Assim, se a política pode ser definida como a ação de sustentar um discurso (Goés, 2008), a escuta analítica é privilegiada ao denunciar que não é preciso ter o conhecimento da condição política de qualquer experiência para sustentar e ser sustentado por um discurso – o sujeito é um efeito de discurso.

A segunda justificativa vem da sistematização filosófica de Badiou (2022). Para ele, a Filosofia é um exercício do pensamento sobre a verdade condicionada por quatro procedimentos: o matema, o poema, a política e o amor. Localizada no último procedimento como “tratamento moderno da condição amorosa” (p.29), a psicanálise de Lacan tem por semelhança com o procedimento genérico da política a relação com a verdade. Se o antifilósofo enuncia que “a verdade em questão na psicanálise é aquilo que, por meio da linguagem (...), aproxima-se de um real” (Lacan, 2011, p.56), torna-se necessário questionar sobre o que seria o real na política e, mais do que isso, uma política do real. Mas antes, o que é o real?


2. Uma excursão pela clínica psicanalítica


Ao indagar sobre o estatuto científico da psicanálise, Lacan (2008) ratifica a psicanálise enquanto uma práxis. A definição de práxis pressupõe um discurso que fundamenta e possibilita a leitura de experiências que, por sua vez, permitem avaliar e transformar a estrutura discursiva que as determinam. Com isso, faz-se possível considerar a psicanálise como um discurso que produz experiências clínicas, éticas e políticas.

A clínica psicanalítica cria as condições para um tratamento, a partir da escuta estrutural da lógica do significante, que produz um sujeito como seu efeito e um objeto enquanto sua causa. Sua direção é realizada por um analista para que a escuta do inconsciente, por parte do analisante, seja capaz de gerar experiências produtivas de indeterminação através do reconhecimento de uma impossibilidade inerente à linguagem. Na escuta de um saber insabido suposto no isso fala, a função de uma análise é a transmissão do fracasso em responder a uma falta estrutural no campo do Outro, isto é, fracasso em obter a resposta para o desejo do Outro e eliminar a antinomia da linguagem. O saber do psicanalista é esse: não há Outro do Outro (Lacan, 2008; 2016).

O analista, suporte do saber na estratégia da transferência, se faz semblante de objeto a. Tal objeto paradoxal, causa de desejo, é o que dá acesso ao real em sua irredutível condição de resto não-simbolizável, frustrando a busca de uma garantia no Outro, pois “o próprio sujeito está marcado por essa falha, por essa não garantia no nível da verdade do Outro” (Lacan, 2016, p.399).

Portanto, é no lugar da impossibilidade da metalinguagem, no ponto onde o simbólico não simboliza a si mesmo, que se situa uma verdade que não pretende ser “verdade da verdade” e cuja negatividade se apresenta em toda tentativa de estabelecer uma positividade do saber. É em relação a esse impossível, que leva o nome de real, que uma análise se orienta (Lacan, 2008) para a transmissão do saber de um fracasso (e de um fracasso do saber) produzido pela experiência do inconsciente.


3. Marxismo: uma práxis que ousa dizer o seu nome


Há uma vasta literatura sobre a relação de Lacan com as diversas esferas do campo político. Seja no âmbito institucional, no qual as suas divergências com outras práticas analíticas o acompanharam até o final da vida, ou em um contexto maior, como seus comentários sobre moral, regimes políticos e mobilizações sociais, Lacan sempre retratou a práxis analítica em sua dimensão de subversão.

Ao menos dois dos seminários de Lacan foram exclusivamente dedicados a tratar da função social da psicanálise: os seminários 7 e 17. No primeiro, A ética da psicanálise (1986/1988), Lacan aponta para a psicanálise como uma experiência ética do desejo em oposição a outras teorias, tais como a ética kantiana, o Bem aristotélico e a filosofia utilitarista, advertindo os analistas de que “não há razão alguma para que nos constituamos como garantia do devaneio burguês” (Lacan, 1988, p. 355). Assim, a concepção lacaniana de desejo tem como função expressar experiências de indeterminação que rompem tanto com fixações imaginárias quanto com determinações da ordem simbólica, promovendo a ética do desejo como sinônimo de ruptura simbólica.

Já o seminário 17, intitulado O avesso da psicanálise (1991/1992), se dá em meio à repercussão do maior evento político da França no período pós-guerra, o Maio de 68, cujo movimento teve como força maior os questionamentos dos estudantes acerca das instituições sociais, entre elas as universidades, que culminaram em protestos, greves e paralisações. O seminário foi a forma como Lacan elabora, a partir da teoria dos discursos, uma resposta às demandas dos estudantes diante da crise com as instituições de saber e, conceituando o inconsciente como discurso, produz novas articulações entre a psicanálise e o campo político. Para isso, Lacan convoca Marx como o inventor do sintoma (Lacan, 1992;1998;2008) e aponta para a homologia estrutural entre as duas teorias, especialmente em relação aos conceitos de objeto a e mais-valia. (Lacan, 1992):


[...] no discurso do mestre, o a é identificável precisamente ao que um pensamento laborioso, o de Marx, fez surgir, a saber, o que estava em jogo, simbólica e realmente, na função da mais-valia. Já estaríamos na presença de dois termos e, daí, só faltaria modifica-los ligeiramente, dar-lhes uma tradução mais clara, para transpô-los aos outros registros [...], constituindo um passo na ordem de descobrimento que nada mais é do que a chamada estrutura (Lacan, 1992, p. 45- 46).


O que o trecho acima evidencia é o valor que Lacan atribui à análise estrutural que o filósofo e sociólogo alemão Karl Marx (1818–1883) realizou acerca do sistema capitalista. A partir de uma metodologia fundamentada no materialismo histórico- dialético, o socialismo científico de Marx (1867/2011; 2017) decifra as leis fundamentais da economia política vigente e produz uma crítica da circulação e da reprodução do capital através da exploração da mais-valia (Mehrwert), constituindo a base na qual os movimentos que reivindicam uma concepção socialista e comunista se formaram (Netto, 2020). Embora Lacan cite Marx em diversos momentos de seu ensino, o diálogo entre psicanálise e marxismo começa antes, na reivindicação do próprio Lacan de que a psicanálise, “uma experiência dialética” (Lacan,1998, p.215), se fundamenta em um materialismo da linguagem, o seu moterialismo (Lacan, 1998). No esforço de garantir o seu estatuto científico, o discurso psicanalítico apresenta um conjunto de elementos e lugares entre os quais são definidas operações que pressupõem tanto a materialidade do significante como base estrutural quanto uma lógica cujo processo se dá por meio da produção de contradições.

Através do materialismo dialético, torna-se possível o estabelecimento de uma relação entre Lacan e Marx via Hegel, proposta fundamentada na obra do filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek. Psicanálise e marxismo não são a mesma coisa, e seu diálogo não poderia deixar de ser marcado por tensões. Mas ambas apontam para algo em comum: o impossível – e é através do impossível que podemos partir para pensar o campo do comum.

Segundo Žižek e Badiou (2013), um mundo se forma pelo “modo como a sua estrutura se relaciona com sua própria impossibilidade inerente” (Zizek, 2013, p.361). Lacan nomeou essa impossibilidade lógica inerente ao simbólico como real. Outro nome para ela é luta de classes, ponto de impossibilidade do capitalismo estruturado como modo de reprodução do capital pela produção de mais-valia, que agora se apresenta em sua versão neoliberal.

Em ambas as teorias, trata-se de uma impossibilidade que aparece enquanto contradição, isto é, como uma impossibilidade lógica em todo e qualquer sistema da razão. Dessa contradição, há a produção de um resto, apontada por Lacan na homologia estrutural entre o objeto pequeno a e a mais-valia (Lacan, 1992). Temos um objeto real enquanto o resto da operação da linguagem e a objetivação do trabalho não-pago como o resto no modo de produção capitalista.

Há, também, a produção de um excesso. Esse excesso, que insiste em ser excesso de uma exceção, é o gozo. O gozo, enquanto instância negativa, é o excesso que insiste como falta, de algo a mais que insiste em escapar à determinação, que insiste em se manter como exceção, sustentado pelo objeto a. Assim também é o excesso da produção, dessa mais-valia como um excesso que não é integrado na lógica do valor e que é sustentada pelo proletariado. O proletariado não é, como lhe é comumente atribuído, a classe trabalhadora, mas a classe dos sem classe, e distinguir uma identidade de classe de um processo de reconhecimento da negatividade que produz indeterminação na identidade é imprescindível (Badiou, 2012; Safatle, 2020). Assim, o reconhecimento do trabalhador como proletariado passa por um processo de reconhecimento de seu lugar como exceção (e, paradoxalmente, excesso) de uma estrutura discursiva.

Por se proporem a lidar com o impossível, psicanálise e marxismo não abdicam do conceito, cada vez mais relativizado, de verdade. De uma verdade que é, como só poderia ser, não-Toda. Disso, surge uma ética do desejo e uma práxis da verdade: nada a perder a não ser nossos grilhões bem que poderia ser o lema de Antígona.

Ainda que Lacan tenha se servido da obra marxiana para formalizar a função social da psicanálise, ele se opõe não somente ao movimento de Maio de 68 e à experiência socialista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), como também afirma categoricamente que não é um “homem de esquerda” (Lacan, 1992, p. 120), rejeitando as experiências por sua proximidade com o discurso da universidade, que demanda um saber ainda sustentado por um mestre.

No entanto, essa recusa não o torna também um “homem de direita”, visto que Lacan pensa os processos de transformação nas estruturas discursivas a partir do conceito de subversão, em detrimento da noção de revolução, de modo que possamos formular a hipótese de que há uma crítica de Lacan aos intelectuais de sua época, muitos dos quais herdeiros da obra marxiana (Roudinesco, 2008), pela forma como o discurso revolucionário circulava no laço social.

Se nos propomos a estar à altura da subjetividade de nossa época, torna-se imprescindível reconhecer que a práxis marxista, mesmo com seus impasses e dificuldades tanto práticas quanto teóricas, se atualizou. Não se trata aqui de descrever uma psicanálise marxista ou de um marxismo lacaniano, mas de apontar para duas propostas de laço social que certamente podem produzir diálogos mais frutíferos do que se costuma imaginar. Assim como não hesitamos em declarar a influência de Saussure, Jakobson, Lévi-Strauss, Gödel e outros para a psicanálise, é preciso assumir a teoria sociopolítica que utilizamos para fundamentar a nossa práxis.

Se Badiou (2022), que insistira na necessidade de repensar o sujeito da teoria marxista como o sujeito lacaniano, localiza a psicanálise lacaniana como um procedimento de verdade na condição do amor, é a hipótese comunista que ele propõe enquanto a única força política capaz de produzir um acontecimento/evento e promover a superação do capitalismo.


4. Causas perdidas



“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Essa frase de Fisher (2020), que optou pelo seu próprio fim, expressa bem a perspectiva contemporânea para uma mudança verdadeiramente radical da estrutura discursiva que sustenta a produção capitalista. Enquanto isso, é o sistema capitalista que tem mostrado sua constante capacidade de transformação, cooptando tudo aquilo que aparece momentamente como resistência à sua lógica. Desvela-se, assim, o caráter “sem mundo” do capitalismo já descrito por Marx (2021):


A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção; e, assim, com eles, todas as relações da sociedade. (...). Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado (...). Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. (Marx; Engels, 2021, p.24-25)

No capitalismo neoliberal, o modo de reprodução do Capital pela produção da mais-valia enquanto um excesso que gera exploração estrutural da classe trabalhadora torna evidente a indeterminação como o motor de sua lógica em uma estrutura caracterizada pela flexibilização, mobilidade e multiplicidade no laço social.

Além disso, outras características da estrutura do capital em tempos de neoliberalismo indicam a gravidade da situação atual: produção de pobreza material e desemprego estrutural, processos de periferização do mundo e de acumulação flexível, despolitização da economia com avanços de políticas de austeridade e a redução da universalidade ao campo das demandas particulares nas gestões pós-políticas da democracia burguesa-liberal (Zizek, 2013; Dunker; Maia; Manoel, 2022; Losurdo, 2006; Paraná;Tupinambá,2022). O quadro se agrava se considerarmos os países de capitalismo dependente (Cueva, 2023), como o Brasil, onde (...) a classe dominante desse país é antinacional, antipopular, antidemocrática e acostumada com uma dominação política pautada no genocídio e no extermínio sistemático de setores das classes exploradas – “um moinho de gastar gente”, como disse Darcy Ribeiro (Manoel, 2022, p.143).

Os sentimentos e reações diante desse cenário são frequentemente de desespero e desesperança, como se estivéssemos enfrentando um problema sem possibilidade de solução. Embora ainda presente, o termo “comunismo” tem sido amplamente utilizado tanto como significante-mestre que conjuga todos as ameaças e mazelas sociais quanto como uma ideia boa, mas desacreditada. Como relembra Manoel (2022), “deixamos de exigir o impossível e aceitamos que não havia alternativa” (p.129).

É necessário lembrar que o discurso do capitalismo neoliberal não se propõe a realizar um debate para que possa prevalecer sobre as demais propostas. Seu funcionamento não se propõe a “esmagar a resistência vigente, (...) mas esmagar a esperança” (Žižek, 2021, p.29), e isso transforma qualquer tentativa de ruptura com a estrutura predominante em uma causa perdida:


“O horizonte comunista é habitado por dois milênios de rebeliões igualitárias radicais fracassadas – de Espártaco em diante – sim, todas foram causas perdidas, mas (…) as causas perdidas são exatamente aquelas que poderiam ter salvado o mundo” (Žižek, 2013, p.646).


Uma causa perdida também está em jogo no campo psicanalítico. Sobre a função da causa no estatuto do inconsciente, Lacan (2008) nos fala de uma hiância naquilo que manca, que fracassa. Longe de querer suturá-la, ele a eleva ao nível de uma causa a ser sustentada:


“Isso indica que a causa do inconsciente – e vocês bem veem que aqui o termo causa deve ser tomado em sua ambiguidade, causa a ser sustentada, mas também função da causa no nível do inconsciente – essa causa deve ser fundamentalmente concebida como a causa perdida. E é a única chance que temos de ganhá-la” (Lacan, 2008, p.128)



Sustentar essas causas perdidas é não ceder do campo do desejo, de uma ética do impossível capaz de transformar todo o campo do possível - e se não quisermos repetir o horror bolsonarista, é preciso fazer com que essas velhas palavras, como proletariado e luta de classes, não tragam o de sempre, de novo, mas que elas possam ressoar como velhas palavras que trazem algo de novo.

No entanto, se o próprio capitalismo já está produzindo processos de indeterminação, o que diferencia esta indeterminação daquela promovida pela experiência psicanalítica?


5. Da política do analista ao analista na política


O que diferencia a produção de indeterminação entre a estrutura do capital e o processo analítico é o reconhecimento da contradição enquanto tal, motivo pelo qual uma teoria do reconhecimento se faz fundamental para a psicanálise. Lacan (1978) havia entrevisto as transformações na lógica do capital ao formalizar o discurso do capitalista, que já apresenta essa característica de uma dialética que nunca recupera o seu excesso e, não obstante, continua a persegui-lo em uma dinâmica de perpétua autorrevolução, naquilo que Hegel nomeou de infinito ruim (Safatle, 2020).

Através desse movimento, a estrutura discursiva do capital promove experiências de indeterminação enquanto um excesso que pressupõe uma normalidade como exceção. A farsa do capitalismo é tornar a impossibilidade passível de ser eliminada pela ampliação das possibilidades, proliferando-se os objetos de consumo, que aparecerão sempre entre uma falta ou um excesso. Dentre esses objetos, encontram-se as identidades, cuja proliferação se torna propaganda do suposto progresso da democracia liberal no respeito às particularidades e diferenças entre indivíduos, assim como alerta Zupančič (2022): “a existência da multiplicidade de indivíduos como ilhas solipsistas de gozo é justamente a forma de existência do vínculo social contemporâneo” (p.92-93).

Zizek (2008;2013) descreve o capitalismo contemporâneo a partir de uma perda da dimensão subversiva da transgressão – hoje, a transgressão se tornou a norma e, com isso, perdeu a sua potência de reestruturar as coordenadas simbólicas. Tal posição é semelhante ao que Agamben (2004) propõe ao afirmar que a norma do Estado burguês é permanecer como Estado de exceção. Diante disso, seguiremos com Walter Benjamin (2021):

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia. Só então perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção (Benjamin, 2021, p.13).

Reconhecer a contradição inerente à estrutura simbólica é tarefa de um psicanalista que esteja comprometido com um processo de transformação radical do campo social. A subversão não impede a revolução; pelo contrário, a mobiliza.

É preciso que o fracasso do Outro possibilite o reconhecimento de um impossível que, através do gozo, se apresente não como um excesso de exceção que sustente a ideia de normalidade, mas sim do excesso enquanto tal. Somente com a inscrição da negatividade fundamental que caracteriza o real como inconsistência do simbólico é que a psicanálise pode se apresentar como prática não de particularidades, mas de uma universalidade:


“É singular que não seja senão com o discurso analítico que um Universal possa encontrar, na existência da exceção, seu fundamento verdadeiro, o que faz com que seguramente possamos, em todo caso, distinguir o Universal assim fundado por todo uso tornado comum pela tradição filosófica do dito Universal. ” (Lacan em O saber do psicanalista (1971-72), 1997, p.89)


Quando Lacan afirma que somente o discurso analítico permite que o Universal encontre seu verdadeiro fundamento na existência de uma exceção, ele diz de um Universal não-Todo, marcado por uma contradição fundamental que não deve ser negada, mas reconhecida enquanto tal. Hegel (2016) nomeou esse processo de síntese da dialética como universalidade concreta, e é tal universalidade que impulsiona tanto a psicanálise quanto o marxismo: o reconhecimento de uma impossibilidade presente em todo e qualquer campo de possibilidades, sustentada por um sujeito que se reconhece como exceção, como o resto da operação simbólica (Zizek, 2008; 2013; Badiou,2012; Safatle, 2020; Zupancic, 2022). Assim estabelece Žižek (2008): “Pratica-se a universalidade concreta quando se confronta a universalidade com o seu exemplo “insuportável”” (Zizek, 2008, p.27).

O horizonte comunista diz, sim, de um impossível - assim como a psicanálise lacaniana. Falam de um impossível que não é utópico, que não é idealista, mas que é aquilo pelo qual podemos rearticular todo o campo do possível. É preciso reconhecer a importância de ampliar as possibilidades de novos modos de laço social, novas maneiras de lidar com a impossibilidade.

Dar lugar à contradição é possibilitar que surjam novas formas de fracassar, de se equivocar. Estabelece-se, assim, a função subversiva da psicanálise: ao produzir a queda do sujeito suposto saber e a identificação com o objeto a, a psicanálise subverte o campo simbólico ao apontar para a sua impossibilidade. Se é isso que opera na clínica psicanalítica, no modo singular de cada um fracassar, é isso que almeja o comunista: um “espaço de fracassos possíveis” (Badiou, 2012, p.26). É em defesa da universalidade concreta, tanto na psicanálise, no campo da saúde mental ou no da política, que acompanho as palavras de Badiou (2012):


“Uma verdadeira política ignora as identidades, mesmo aquela tão tênue, tão variável, dos “comunistas”. Conhece apenas aqueles fragmentos do real dos quais uma Ideia atesta que o trabalho de sua verdade está em curso” (Badiou, 2012, p.11).


É preciso manter essa Ideia em curso, pois “só terá o dom de atiçar no passado a centelha de esperança aquele (...) que tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo nunca deixou de vencer” (Benjamin, 2021, p. 12).

Isso não faz com que todo psicanalista ou o campo psicanalítico se identifique ou tenha que se identificar com essa política. Como práxis, a possibilidade de leitura das experiências é determinada pelo modo não somente de como fundamentamos e concebemos os discursos, mas de como somos fundamentados e concebidos por eles.

Existem outras possibilidades, as quais poderiam levar para caminhos divergentes e até mesmo antagônicos. É justamente por existirem possibilidades que a política é o campo no qual sustentamos discursos: isso é tomar partido. Isso é tomar partido – ou, como diria Lacan (2008, p.350), “O inconsciente é a política!”.


Matheus H. Cezarino

 


REFERÊNCIAS

 

 

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DUNKER, Christian; Maia, Heribaldo; Manoel, Jones. Marxismo, psicanálise e revolução. São Paulo: Lavrapalavra, 2022

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